Vô
- Luciano Lopes
- 9 de jul. de 2019
- 3 min de leitura
Atualizado: 25 de out. de 2019

O meio sorriso dele precedia uma gargalhada das mais marcantes. Quando via eu e meus irmãos, os braços automaticamente se abriam para o abraço. O cheiro de leite de colônia no rosto e o perfume de sabonete Phebo, que ele adorava, eram uma marca registrada de sua personalidade.
- "Bença, vô!"
- "Deus te abençoe, meu filho!" - dizia ele, antes de nos fazer cócegas.
E lá ia meu vô para sua mercearia, com sua calça de linho cinza e a camisa de manga curta, com os dois primeiros botões abertos, mostrando o seu peito sem pelos e as marcas de sol no pescoço.
Vô conhecia todos daquela pequena cidade do interior de Minas. Sentado no banco em frente à sua casa, cumprimentava um a um que passava pela rua. Um dos seus poucos amigos de infância, sempre que o via, não tardava em fazer uma brincadeira meio macabra, mas divertida:
- "E aê, Belooo, bora apostar quem vai morrer primeiro?"
- "Você, com certeza!" - respondia meu vô, dando uma risada alta.
- "Que nada, vai ser você!", retrucava o amigo, com uma risada ainda mais alta. E ficavam ali, entre as recordações, conselhos e prosas bem-humoradas que selavam aquela amizade que já atravessava 60 anos.
Vô gostava de frango com pimenta-do-reino. Amava cocada e marrom glacê - comprava caixas fechadas com latas desses doces. O pequeno prazer lhe trouxe um Diabetes ofensivo, mas não lhe tirou a graça de viver do seu jeito.
Vô amava roça. A sua tinha o tamanho de 600 campos de futebol. Vô era comerciante dos bons, negociava terras como uma criança que trocava figurinhas de álbuns infantis com os amigos. Foi um dos dez maiores produtores de leite da região de Montes Claros. E só hoje, mais de 20 anos depois de sua morte, é que percebi que ele foi o primeiro grande empreendedor que conheci na vida. Jamais perdeu uma venda, porque sabia aliar a sua necessidade com a de quem comprava: a satisfação plena, dos dois lados, era uma missão.
Vô gostava de juntar os netos, comprava dúzias de laranjas e tangerinas e levava todos para tomar banho de rio e saborear as frutas, sempre doces. Vô era um companheiraço. Era generoso com seus afetos, abraçava a gente o tempo todo. Vô me perguntava como eu estava na escola, queria saber das minhas escolhas. Adorava me ver dançar lambada e forró com as primas nas festas da família. E a gente adorava ver ele feliz.
Ao dar entrada no hospital, naquele domingo à noite, vô perguntou ao meu pai onde eu e meus irmãos estávamos. Tínhamos ido à missa e, depois, a turma foi para a sorveteria. Naquele momento, na sua última conversa com o filho, meu vô pressentiu que jamais nos veria novamente. Quando eu e meus irmãos chegamos em casa e ficamos sabendo que ele estava internado, fui eu que senti, na voz embargada de meu pai, que não veria vô fisicamente vivo outra vez.
Não consegui dormir. Varei a madrugada com os olhos abertos. E jamais esquecerei do som pesado e longo do telefone da minha casa, às 5h10 da madrugada, quando ligaram do hospital. Na sequência do alô, um silêncio ensurdecedor. Escuto os passos de meu pai até a porta do quarto onde ficávamos eu e meu irmão e, abrindo-a lentamente, ele então acendeu a luz. Eu, insone, li nos seus lábios: "O vô se foi".
Guardo poucas lembranças daquela segunda-feira, mas algumas foram marcantes. Foi a primeira vez que vi meu pai - meu herói forte, indestrutível e protetor - sendo carregado aos prantos pelos amigos por não suportar a dor da perda de seu herói, também forte, indestrutível e protetor.
Lembro-me de voltar para casa deitado, no banco de trás do carro, olhando o céu estrelado através da janela. E imaginando que Deus estaria, à beira de um rio de águas azuis, vendo vô nadar feliz enquanto descasca algumas laranjas doces para ele.
Quando chegamos em casa, meu pai disse algo que me impressionou muito: o amigo de infância do meu vô, que fazia aquela chacota macabra mas divertida, morreu dez minutos antes dele, no mesmo dia. Não pude dar uma risada alta em respeito à nossa dor, mas arrisquei um meio sorriso, assim como vô fazia. E pensei no quanto ele e o amigo deveriam estar gargalhando naquele momento, nos céus da eternidade, ao lembrar da brincadeira e da amizade que sobreviveu à passagem do tempo.
Comments