As comemorações que guardamos em nós
- Luciano Lopes
- 17 de mar. de 2023
- 3 min de leitura
Atualizado: 26 de mar. de 2023

Lembro-me de como era o Natal na casa da minha avó materna. Ele tinha um significado mais do que místico nas nossas vidas. Era o momento mais esperado do ano: a reza do terço antes da meia-noite, o encontro com os primos, refrigerante a rodo, a música oitentista que fazia qualquer um dançar até sentado.
Todo dia 24 de dezembro, o ritual começava pela manhã: minha mãe preparava as carnes com vinho, sal, cebola, alho, coentro, salsa e azeite, e as deixava "descansando para o tempero pegar". Meu pai abastecia a geladeira com cerveja "para ficar trincando de gelada" na hora de beber. E eu, na mesa da cozinha, olhava os dois querendo que aquele momento não tivesse fim.
Sempre chegávamos cedo na casa da vó. Eu achava ótimo, pois ficaria mais tempo brincando com meus irmãos e primos. A ceia tinha farofa (bem torradinha, com carne seca), peru, chester, churrasco, vinagrete, arroz com cenoura e passas (que depois foram proibidas eternamente pela maioria). Mas tinha algo maior, que ligava toda a família, e eu acho que era amor mesmo. Quando eu me sentava no sofá, cansado da correria e das brincadeiras, observava todos e imaginava cada um com várias linhas verdes saindo de si e se conectando aos outros.
Em 14 de novembro de 2001, meu avô morreu. Lembro-me de abraçar minha mãe, no cemitério, e ouvir incessantemente o barulho da terra batendo no caixão quando era jogada pelo coveiro. No primeiro Natal após sua morte, a coisa começou a desandar. Um laço afetivo foi quebrado. Agora, todos andavam com a linha imaginária, que se conectava ao meu avô, balançando cinza e triste em si.
O dia 24 de dezembro foi uma tristeza só. Todos ensaiavam sorrisos, mas a dor era maior. Foi assim até que o Natal, que era o dia mais esperado por todos nós, foi perdendo o viço. Com o passar do tempo, os tios foram se casando e a cada ano havia uma baixa. Mas a pior delas veio em 2009, quando minha avó morreu. E pensar que, no natal de 2008, fui eu quem não quis ir lá.
Lembro-me de, na véspera do dia 25, ter ligado para minha avó. E a primeira coisa que ela disse foi: "Meu querido, achei que não iria falar de novo com você antes de morrer". Fiquei chocado com as palavras, não me atentei ao sinal de despedida. Vinte dias depois ela morreria, vitimada por um AVC. Não fui ao velório. Estava me recuperando de uma síndrome do pânico que me abraçava apertado há dois anos. Viajar seria uma tortura.
Depois disso, a família se desfamiliarizou. As linhas imaginárias ganharam outras conexões e as que se mantiveram ligadas desbotaram um pouco de cor. Hoje elas se esforçam para continuarem unidas e evitar, como diria uma das minhas tias, "que a família passe a se encontrar apenas em velório".
Carrego a certeza de que o ser humano vive é de lembrança. A gente se alimenta do novo para saciar a memória, que come tudo e guarda para si. Só quando a gente se torna maduro é que percebe que o importante é estar junto.
Presentes de aniversário, brindes, amigo oculto? São só distrações comerciais para que não percebamos o que é essencial na vida da gente. As comemorações que guardamos em nós existem para celebrar o outro, que é onde reside, enfim, o propósito do amor.
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