Bolinho de chuva para quando a saudade apertar
- Luciano Lopes
- 29 de mai. de 2020
- 2 min de leitura

Acordou com o cheiro do café fresco, passado no coador de pano, ao som de "Pra Desbotar a Saudade", de Zezé Di Camargo e Luciano. Espreguiçou na cama, sentou e cruzou as mãos. Rezou. Enquanto a janela entreaberta denunciava que o céu estava em seu tom azul mais vibrante, encerrou a prece com um demorado "amém". O cheiro persistia e, ousado, disse que não arredaria o pé.
O moço lavou o rosto no banheiro e, da cozinha, a voz da mãe reverbera e atravessa o corredor para dar a primeira ordem do dia: "Filho, vem tomar café!". E ele foi. A caminho, parou na sala. A dupla de cantores entoava sua parte preferida da canção: "água nascente das serras / que lavam as pedras / imóveis no chão. Corre entre matos e campos / riachos e rios / regados de ribeirão". Oito passos à frente, a cozinha e o cheiro de café mostraram suas companhias: a família e, no centro da mesa, eles - os bolinhos de chuva.
O queijo furado e o bolo de fubá quentinho buscavam rivalidade travessa. Mas os bolinhos reinavam absolutos na vasilha de porcelana com pinturas azuis sobre a toalha branca, que balançava com sua renda lilás nas pontas. As xícaras exibiam sua elegância sobre os pires enquanto o café esquentava o interior. Tanta malícia não adiantava. Os olhos do moço estavam nos reis, levemente cobertos com açúcar refinado e canela, exibindo o poder de sua suculência.
Pegou um e mordeu. Sentiu a textura, o festival de sabores e fechou os olhos pedindo para que aquele gosto de afeto durasse a eternidade. Abriu os olhos e a mãe sorria: bolinho de chuva era sua declaração de amor à família. Bolinho de chuva apaga a mágoa e a tristeza na areia de nossos sentimentos sem deixar sinal. Bolinho de chuva (crocante por fora e fofo por dentro) deixa qualquer dia chuvoso ensolarado em nós e deve ser feito sempre que sentirmos saudade.
"Bolinho de chuva é um orgasmo para os sentidos, um retrato emoldurado de nossa memória afetiva, um beijo de mãe que atravessa a cortina do tempo." É o que agora pensa o moço, trinta anos depois daquele despertar matinal na roça, ao olhar pela janela de seu apartamento enquanto o café pingava pelo coador zero poético (mas ecológico) de papel.
Não pensou duas vezes: pegou o telefone e, quando a voz doce e feminina atendeu a ligação, perguntou sem rodeios: "Mãe, pode me passar aquela receita de bolinho de chuva?"
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