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Bolo de laranja com memórias

Atualizado: 31 de jul. de 2023


Ontem fiz um bolo de laranja e o que começou como algo simples se tornou uma viagem nas recordações gastronômicas e afetivas que estavam adormecidas na minha memória.


Três ovos, dizia a receita. Quando fui quebrá-los, lembrei de minha mãe na cozinha daquela casa, em plenos anos 1980, preparando omeletes como se semeasse o coração na comida. Veio o cheiro dos morangos plantados no quintal, embaixo da caixa d'água, e o som das unhas e das patinhas de Lassie, nossa cachorra, batendo no chão enquanto ela corria pelo chão vermelho, tingido com cera Xadrez.


Meia xícara de óleo. Meu pai, que faz o melhor pastel de festa, dobrando a massa (colocando a carne moída com batatinha picada e temperada com salsinha, sal e amor), e fechando-a com um garfo. Na vitrola, o disco de música sertaneja tocava enquanto nos entregávamos às delícias de uma tarde com café, suco e pastel. "As andorinhas voltaram, e eu também voltei", cantava o Trio Parada Dura, enquanto eu mordia mais um pastel. Olhava meus irmãos e meus pais e ali percebi que a felicidade também se sentava à mesa conosco.


Duas xícaras de trigo. Enquanto eu o peneirava, os grânulos não ficavam apenas mais soltos para trazer leveza à massa do bolo. Ali, passearam pela memória as pessoas que cruzaram meu caminho e fizeram a vida mais leve. Pessoas que hoje fazem falta. Meu luto e suas ausências foram ressignificados - agora em sorrisos, no afago dos momentos que vivemos. Sim, lembro de todos vocês: parentes, amigos, vivos e mortos, e quem mais me tratou bem.


Uma xícara de açúcar. Balas de goma, algodão doce, pudins, arroz-doce. A infância perfeita, a juventude consciente, a fase adulta e suas responsabilidades. A vida adocicada, mas com seus momentos amargos. Enquanto cada grãozinho branco açucarado graçava a tigela, os desafios, as dores, as perdas e as lágrimas recitaram também seu poema de lembranças para mim, exigindo espaço e mostrando que tudo que machuca também germina força para seguir avante.


Um copo de suco de laranja e uma colher com fermento. Como todo ciclo que precisa ser fechado, a laranja, com sua cor solar, trouxe vitalidade à massa, dando sabor e apontando o caminho que me faz resgatar o entusiasmo com as coisas e pessoas. Fermentando e fazendo crescer de novo uma vontade de continuar - não sei para onde e para quê - mas já redesenhando o caminho para me levar à paz que preciso.


Missão cumprida. Bolo no forno e a confiança em dia. Aroma se espalhando pela casa e eu agora no sofá, apreciando as plantas que cultivo e que ficaram bonitas na estante de madeira que comprei e montei sozinho. Passaram-se 30 minutos e o bipe revela que o bolo atingiu a maioridade da suculência. Levanto, adianto um café, desligo o forno. E lá está ele, o bolo de laranja, estaladinho por fora e macio por dentro, e que resgatou minha fé no novo. Vieram também as emoções do porvir e a sabedoria que ainda cabe em mim, pois tenho ao meu favor tudo que posso aprender e experimentar.


Deus tem dessas coisas: em um simples fazer de bolo, faz a vida passar novamente à frente dos nossos olhos. Que delícia saborear cada momento que vivi. Que delícia saborear o que virá.


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