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Um deserto de palavras

Atualizado: 23 de out. de 2019




Foi momento de aridez na escrita. A palavra não saía, o pensamento não queria mais dançar. Fui tateando o escuro, buscando luz para as frases, mas elas rejeitavam qualquer ajuda. Sozinho, segui pelos caminhos onde o sol deixou alguma pista no papel. O horizonte era o nada. Passaram as horas e eu pensei em sumir. Sumi com deleite de regresso, mas tem vezes que escrever é isso mesmo. É sumir. É achar. É voltar.


Era tempo de vasculhar meus quartos. Estavam todos com as portas fechadas, careciam de iluminação de respeito. Que medo, achei que tinha perdido a inocência de ver o mundo com olhos que não escurecem. De acreditar que o longe era a incerteza do perto, que os ponteiros do relógio me trariam a segurança da criatividade. Ah, eu fui tão longe, fiquei escravo da minha mente. Ela me cobrava o retorno, mas não dizia como, e fui andando sem ninguém para me dar as mãos. Desaprendi a falar com o coração. Eu, devoto do afeto, quase me rendi: acreditei que, quanto mais caminhava no deserto à procura de palavras, mais as palavras criavam um deserto em mim.


A inspiração custa caro, mas sai barato para alguns - o que não foi o meu caso. Às vezes, ela me provoca com o esgotamento. Isso aguçou a minha sensibilidade para perceber que a aridez do pensar é um tipo de renascimento. Seria a minha alma me desprendendo do que não faz mais sentido? Nos últimos dias, confesso, pouca coisa me inspirou. E eu me recolhi nos quartos vazios, que me privaram de ver as estrelas e os ipês floridos na janela.


O remédio foi escrever sobre o não escrito. Sobre a falta do que dizer, sobre o que passei no deserto. Mas descobri que lá também era lugar de luz. Lá, existia a imensidão das possibilidades. Lá, o perto era longe da insegurança. Lá, quebrei as correntes com os braços erguidos em liberdade. Lá, foram aparecendo as mãos para amparar. Eu sumi, achei e voltei.


Meus quartos, aqueles escuros e sem portas, tinham janelas. Apareci com o deleite do progresso e isso aguçou minha capacidade de perceber que a aridez do pensar é quando a alma já se desprendeu do que não faz sentido. Aprendi a lição: quando a inspiração custar toda a minha força, o melhor caminho é saltar a janela e ir ao encontro de meus ipês.



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